RaitoL
Brazil
 
 
"Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho
o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar
de um sono não dormido os primeiros ruídos da vida da cidade,
a subir, como uma cheia, do lugar vago, lá embaixo,
onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados
pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a
não ouço agora... — só o cinzento excessivo da luz frinchada
até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade
frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei
qual é. São sons alegres e dispersos e doem-me no coração
como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a
uma execução. Cada dia se o ouço raiar da cama onde ignoro,
me parece o dia de um grande acontecimento meu que não
terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se
do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas
ruas e as vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser
julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há
em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia
o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes."

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego.
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